25 Agosto 2023
"Enquanto o comunismo surge do seio da modernidade – da filosofia da história hegeliano-marxista –, para o nazismo é diferente. Não nasce da extremização, mas da decomposição da cultura moderna".
O artigo é de Roberto Esposito, filósofo italiano, professor da Escola Normal Superior de Pisa e ex-vice-diretor do Instituto Italiano de Ciências Humanas, publicado por La Repubblica, 23-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "O comunismo “realiza” em formas paroxísticas uma tradição filosófica moderna – aquelas da igualdade absoluta. O nazismo rompe com ela em nome da absoluta diferença. E mais ainda: o comunismo tem a história como transcendental, a classe como sujeito, a economia como léxico. O nazismo tem como transcendental a vida invertida em morte, a raça como sujeito, a biologia como léxico".
As palavras não são todas iguais. Algumas deslizam sobre as coisas, limitando-se a descrevê-las. Outras penetram na realidade, mudando os equilíbrios a favor de uns ou de outros. Criam novos hegemonias, ou sua ilusão. Por isso são disputadas, tornam-se terreno de uma batalha ideal que sempre é também política.
A primeira destas palavras, sobre a qual devemos focar a atenção, é o termo-conceito “totalitarismo”. Não por acaso foi frequentemente evocado pela direita italiana de governo como escudo protetor em relação ao pedido de corte das pontes com o fascismo: não com o fascismo como tal, foi respondido pelos seus expoentes, mas com todos os totalitarismos. Dando assim como certo o significado de uma categoria que é tudo menos neutra, aliás, desde sempre contendida por forças políticas rivais.
Cunhada pelos antifascistas italianos no início da década de 1920 contra o fascismo, foi depois apropriada por este - por Mussolini e por Gentile - é invertida num sentido positivo contra os seus adversários.
Retomada nas décadas de 1930 e 1940 na França, em função antistalinista, e na Alemanha em chave antinazista, encontrou, em 1951, uma acomodação poderosa no livro de Hannah Arendt sobre as Origens do totalitarismo numa análise comparativa de nazismo e stalinismo (Einaudi, com um ensaio de Simona Forte).
Traduzida para o léxico da ciência política por Carl Friedrich, Zbigniew Brzezinski e Raymond Aron, no período da guerra fria desempenhou uma função instrumental de carácter anticomunista, atraindo críticas não injustificadas. Levada por autores como Jacob Talmon e François Furet às origens da Revolução Francesa, ou até mesmo ao platonismo por Karl Popper, acabou por perder todo significado histórico e semântico, tornando-se uma forma, para quem a utiliza, de escapar a uma clara tomada de posição político-cultural.
Os problemas que levantou no debate mais recente são essencialmente dois: a relação com o fascismo e a conexão entre nazismo e comunismo. Quanto ao primeiro ponto, ainda no último livro Totalitarismo 100. Ritorno alla storia (Salerno, 2023), Emilio Gentile esclareceu de maneira definitiva a situação. Se por totalitarismo entende-se um sistema, numa sociedade de massas, que faz uso sistemático da violência e do terror, monopolizando os meios de comunicação, o fascismo constituiu o seu protótipo na Europa. Contra as tentativas de reduzi-lo a uma forma de cordial autoritarismo, deve-se dizer que penetrou profundamente na sociedade, na cultura e nas instituições italianas, corrompendo-as. É verdade que, no plano histórico, apesar das guerras coloniais de extermínio, manchou-se por crimes quantitativamente muito menores do que o genocídio nazista. Mas no plano paradigmático apenas o antecipou. Mesmo que não sejam a mesma coisa, sem fascismo não haveria tido o nazismo.
Mas precisamente no plano paradigmático - isto é, na sua essência "filosófica" - o nazi-fascismo é dificilmente comparável ao comunismo. Não pelo número de vítimas – as do stalinismo foram, aliás, maiores que as do nazismo. Mas pela radical diferença de suas linguagens conceituais. Aqui a categoria de totalitarismo evidencia os seus déficits mais vistosos. Não é à toa que livro de Arendt, ótimo na reconstrução do nazismo, é frágil na análise comparativa com o comunismo. E, por sua vez, os livros sobre o totalitarismo de Aron, Talmon e Furet, focados no comunismo, não falam de nazismo. Difícil homologar fenômenos históricos tão diferentes. Certo, não faltam ligações transversais – violência disseminada, terror generalizado, primazia do partido sobre o Estado (ao contrário do fascismo). Mas num quadro ideológico claramente diferente.
Enquanto o comunismo surge do seio da modernidade – da filosofia da história hegeliano-marxista – para o nazismo é diferente. Não nasce da extremização, mas da decomposição da cultura moderna. Não porque não contenha lascas, fragmentos, como demonstrou George L. Mosse, mas porque os traduz para uma linguagem completamente heterogênea ao léxico anterior. O comunismo “realiza” em formas paroxísticas uma tradição filosófica moderna – aquelas da igualdade absoluta. O nazismo rompe com ela em nome da absoluta diferença. E mais ainda: o comunismo tem a história como transcendental, a classe como sujeito, a economia como léxico. O nazismo tem como transcendental a vida invertida em morte, a raça como sujeito, a biologia como léxico.
Ambos perseguem uma visão científica doida, mas os comunistas identificavam-na com uma filosofia pré-determinada da história, os nazistas numa sobreposição entre raças humanas e animais.
O hierarca Rudolf Hess explicava que “o nazismo nada mais é do que biologia aplicada”. Hitler era chamado de "o grande médico alemão", porque afundava o bisturi no corpo daquele povo para expulsar o tumor que o devastava, identificado com o judaísmo. Como escreveu Emmanuel Levinas em 1934 em Algumas reflexões sobre a filosofia do hitlerismo, a essência do nazismo, diferente de qualquer outra ideologia, reside no encadeamento do espírito ao corpo: “O biológico, mais do que o objeto da vida espiritual, torna-se o seu coração”.
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É fácil dizer totalitarismo. Artigo de Roberto Esposito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU